Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Lucas Figueiredo

Arnaud Julien Pallière, Vista de Vila Rica, 1820, óleo sobre tela, 36,5 × 96,8 cm. Museu da Inconfidência (Ibram).
“Me vejo cercado de inimigos, sempre vivo em aflição e desconfiança; entrou todo este povo a ultrajar-me, [...] não havia rua desta cidade [do Rio de Janeiro] por onde pudesse passar sem que ouvisse as maiores injúrias e desatenções.” O contratador Joaquim Silvério dos Reis, delator da Conjuração Mineira, fez o desabafo em março de 1791, após a casa em que vivia, na capital da colônia, sofrer um início de incêndio, provavelmente criminoso. Àquela altura, o principal alvo de sua denúncia, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, estava preso havia dois anos em uma masmorra da fortaleza da Ilha das Cobras, no Rio, em regime de solitária. Dali a um ano, moído pelas más condições no cárcere, o alferes seria condenado à morte na forca. Já Silvério dos Reis, seu antigo amigo e companheiro de conspiração, viveria mais 27 anos e carregaria para sempre o rótulo de traidor.
O custo pago pelo delator foi alto, e os prêmios que ganhou foram altíssimos. Tudo previsto. Sem possuir qualquer traço de caráter ou culpa, a única coisa que importava a Silvério dos Reis era o lucro — não à toa, ele era conhecido como “melhor calculador”.
Natural de Leiria, região central de Portugal, Silvério dos Reis — um homem de traços finos, costeletas grossas e olhar sereno — era dez anos mais novo que Tiradentes. Mudou-se para o Brasil ainda jovem e, atuando no eixo Minas-Rio, fez fortuna em negócios variados, quase sempre graças à compra de favores de poderosos, o que já naquela época era chamado de corrupção. Caloteiro, ganhou o apelido de Joaquim Saltério.
Em 1788, ao descobrir que um grupo de amigos e conhecidos planejava um levante, o coronel viu surgir à sua frente uma nova oportunidade de negócio. Silvério dos Reis juntou-se aos conjurados, mas não por compartilhar das aspirações político-filosóficas do movimento. Resolveu apostar suas fichas na sedição visando exclusivamente seus interesses pessoais, sobretudo um ponto específico: o cancelamento de sua gigantesca dívida com o erário, a quinta maior de Minas Gerais. O contratador devia 220 contos de réis aos cofres da administração colonial, o equivalente a 765 anos do soldo de Tiradentes como alferes da cavalaria. Topou apoiar a sublevação cedendo homens e pólvora, mas sob uma condição: que, ao tomar o poder, os rebeldes queimassem os livros caixas da Junta da Real Fazenda que registravam seus débitos.
Se o amor pelo ouro fez de Silvério dos Reis um conjurado, foi também o que o levou a delatar. Mais tarde, antevendo o fracasso do movimento, o coronel decidiu mudar de lado, entregando seus comparsas ao governador de Minas Gerais, o visconde de Barbacena. Com a ação, o coronel esperava ganhar um prêmio gordo, o perdão de suas dívidas.
Quando, num domingo, o trânsfuga apareceu na chácara do governador, em Cachoeira do Campo, este sabia que se tratava de “um homem de mau coração”. Mas ouviu-o com atenção, já que ele, Barbacena, também tinha muito a ganhar com aquela conversa. Até porque, entre os conjurados, havia quem quisesse cortar a cabeça do governador — Tiradentes, por exemplo, estava obcecado com a ideia. Ao ouvir a delação, Barbacena não acreditou que Silvério dos Reis era o herói que dizia ser, e chegou a desconfiar que ele estivesse metido no levante. Mas prestou muita atenção quando o coronel contou detalhes dos planos rebeldes e entregou quase duas dezenas de conspiradores.
Valeu a pena? Para a Coroa portuguesa, sem dúvida, pois conseguiu sufocar a primeira tentativa de estabelecer um território liberado na América do Sul, mantendo assim a parcela mais rica de seu império. Quanto a Silvério dos Reis, depois de um curto período na cadeia, ele ficaria livre e passaria a ostentar o título oficial, reconhecido pelas autoridades régias, de primeiro delator da Conjuração Mineira. E, nessa condição, apresentaria uma longa lista de reivindicações à Coroa (suspensão do confisco de seus bens que haviam sido sequestrados, pensão vitalícia para si e seus filhos, títulos honoríficos, sinecuras e até cavalos dos estábulos de sua majestade). Foi atendido em alguns casos e em outros, não. No final das contas, em termos estritamente financeiros, saiu no lucro. Mas sem dúvida pagou um preço elevado. No decorrer dos anos, sua rejeição cresceria em escala geométrica, e ele seria menosprezado até mesmo por seus descendentes, que chegaram a negligenciar o cuidado com seus restos mortais.
Lucas Figueiredo é jornalista e escritor, nasceu em Belo Horizonte em 1968. Recebeu três prêmios Esso, dois Vladimir Herzog e um Jabuti. Foi repórter da Folha de S.Paulo e colaborador da rádio BBC de Londres. Também atuou como pesquisador da Comissão Nacional da Verdade e consultor da Unesco. É autor dos livros-reportagem Morcegos negros e Ministério do silêncio, entre outros. Publicou pela Companhia das Letras Lugar nenhum e o recém-lançado O Tiradentes.
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