Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
por Alonso Alvarez
Manoel de Barros abriu o livro O guardador de águas, parou numa página, apontou, e disse: “Olha, Alonso, este poema foi escrito para iluminar este verso.”
Estávamos num boteco em frente ao MASP, se esquentando com conhaque por causa do outono gelado durante o encontro de poetas no “Artes e Ofícios da Poesia”, do outro lado da Avenida Paulista.
Tinha conseguido, pela primeira vez, trazer o poeta tímido para um evento público. Já éramos amigos, via carta, e ele aceitou o convite, com algumas condições: não dar entrevistas nem participar de rodas com mais de três pessoas. E ficamos, ele e eu, atravessando a avenida, cada vez que o frio apertava, atrás de uma boa dose de conhaque.
Eu já havia feito alguns haicais que surgiram depois de uma brincadeira com o nome da poeta Alice Ruiz durante o II Encontro Brasileiro de Haicai, que acontecia no Centro Cultural São Paulo, bem em frente à minha primeira livraria. Naquela tarde de sábado, eu ia e voltava para a livraria depois de dar algumas espiadas no encontro. Eu era apenas um livreiro. Mas no final do evento haveria um concurso. Um tema seria escolhido e os participantes teriam 20 minutos para fazer um haicai, que seria julgado por um júri composto por vários praticantes do haicai no Brasil, entre eles Paulo Leminski e Alice Ruiz.
E o tema escolhido foi “noite”. Na hora me veio uma ideia para brincar com o nome da Alice Ruiz. Escrevi e fui entregar para o pessoal que recolhia os haicais participantes. Não aceitaram o meu, pois não tinha o número de inscrição e era isso que garantia o anonimato. Eu não havia feito a inscrição no evento, e já estavam encerradas. Quase desistindo, achei um crachá jogado numa mesa e peguei o número de inscrição de alguém que certamente já tinha ido embora.
Por incrível que pareça, ganhei o primeiro lugar. Chamaram pelo nome do dono do crachá e como ele não aparecia, leram o haicai, e assim descobri que o meu fora o vencedor. Claro que os japoneses da Aliança Brasil-Japão não gostaram muito da minha atitude, mas depois se divertiram com a brincadeira.
No ano seguinte ganhei um Prêmio Jabuti de Melhor Produção Editorial, e a gráfica que imprimiu os livros ficou tão feliz com o prêmio que me deu de presente a impressão de um livro meu, se eu tivesse... Mas eu não tinha.
Foi quando surgiu a ideia do livro de haicais Dia Noite, com Camila Jabur. Um livro que girasse na mão do leitor, com duas capas, com doze haicais sobre o dia e doze sobre a noite. E começaram a jorrar muitos haicais. Eu até achava que estava fazendo algo errado, mas Alice Ruiz riu e disse que era assim mesmo, que eu aproveitasse o jorro, pois a fonte às vezes seca. A nova safra deu origem a uma caixa com quatro livrinhos, chamada Hé, “minha alma vai atrás de ti”, em guarani.
Depois disso, aconteceu: a fonte secou.
Só recentemente, muitos anos depois, colho um ou outro haicai pelas ruas quando vou passear com o meu cachorro:
vento com pressa
uma folha corre atrás
mas logo desiste
o ipê na rua
quem parou pra te ver,
eu ou a lua?
vem com o vento
o teu perfume
que as flores espalham
ela no rio
a água deitada
no corpo dela
Naquela noite fria de outono no Trianon aprendi com o poeta Manoel de Barros algo que também pode definir o haicai: ele é um instante iluminado pela natureza que nos cerca — breve e leve, mas que revela que a vida pulsa.
Alonso Alvarez é poeta, autor de literatura infantil e juvenil e editor. Seus haicais integram a coletânea Haicais tropicais, publicada em 2018 pelo selo Boa Companhia.
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