Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Isso de traduzir literatura não acaba de me encantar. Especialmente, claro, literatura boa.
É uma chance sem par de mexer embaixo do capô da prosa mais poderosa, de desmontar o mecanismo de caixinha de música de poemas incríveis. É um privilégio grande de ser lido junto com as pessoas que escreveram aquelas coisas.
Mas outra coisa que me fascina, demais, no processo, é o quanto ele me libera de ser eu mesmo (obrigatoriamente, na verdade) e me obriga a ser coisas as mais diferentes. Eu tantas vezes fico de saco cheio de mim… Do meu ‘estilo’ (será que alguém consegue ler tantos parênteses? E aspas!). Dos meus cacoetes de escrever (e pensar). Será que alguém aguenta ler essas frases separadas por pontos quando devia ser ponto e vírgula?
Das minhas palavras.
(E parágrafo!)
:)
Mas na hora de traduzir você precisa cantar de outro jeito, soar de outra maneira. Como um refinado narrador do século XIX, como um poeta irônico do modernismo, como a personagem de uma comédia teatral do século XVIII, como uma adolescente acamada num romance do século XXI, como todas as dezenas (centenas?) de vozes, estilos, personas e imitações de imitações de estilos que aparecem no Ulysses.
Ser uma versão coerente do narrador de Thomas Pynchon é completamente diferente de ser uma coerente versão do narrador de Ian McEwan. Criar a voz dos diários de Charles Darwin é outríssima coisa do que inventar o som das letras de Bob Dylan.
Às vezes esse processo é custoso.
Recentemente (aguardem, por enquanto é meio segredo) eu traduzi um romance clássico dos anos 1890, e só fui parar de me debater entre possibilidades diversas de tons e registros na hora da revisão final. Traduzi tateando, pra depois dar forma.
Às vezes encaixa como mágica.
Sei que já falei disso aqui, mas continuo pasmado com a facilidade com que o texto de Ali Smith sai dos meus dedos. Parece que ela é o que eu seria se crescesse.
Às vezes deriva de contatos largos.
Passei anos lendo, relendo e literalmente estudando David Foster Wallace antes de afinar a voz de Graça infinita.
Às vezes precisa sair a toque de caixa.
Mas é sempre uma experiência, pra mim, liberadora. Quase uma espécie de terapia mesmo. Deixar de ouvir as minhas vozes e os meus idiomas (a minha cabeça, vai por mim, é uma barulheira sem fim… I hear in my mind/ All of these voices/ I hear in my mind/ All of these words/ I hear in my mind/ All of this music/ And it breaks my heart) e ter que centrar a minha (parca, ok) inteligência verbal a serviço de ser outra(s) pessoa(s). Acho lindo.
Mas não sei se esse tempo traduzindo, sendo outros, sendo trezentos e cincoenta, terá me preparado pra o que há de ser a minha tarefa mais difícil. A minha missão: impossível.
Comecei ainda ontem, tentativamente, a princípio com algum sucesso. Mas ainda aguardo pra ver a repercussão entre um público que também há de ser um dos mais exigentes que eu já enfrentei.
Joyce, Pynchon, Eliot, Smith. Vou precisar de todos vocês e de tudo que vocês já puderam me ensinar. E mesmo assim não sei se dou conta.
Porque daqui até dezembro, eu vou ser a voz do mito. A voz definitiva.
Me chamaram pra ser o Papai Noel do grupo de WhatsApp dos coleguinhas do meu sobrinho Bernardo.
Torçam por mim!

Foto: Shutterstock
Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
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