Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Uma vez que a tarefa de resumir um ano de leituras em alguns títulos é sempre penosa e arbitrária, escolho um critério: livros que transformaram minha visão do mundo, minha visão daquilo que se chama “criatividade” e “imaginação”, livros inventivos e detalhistas que colonizam a mente do leitor por longo tempo.
O que de imediato chama a atenção no livro de Liudmila Petruchévskaia é a aparente facilidade de leitura: contos curtos e dinâmicos, narrativas movimentadas, instantâneos sempre interessantes de vidas (ou mortes) que seguirão para além da história. A facilidade, porém, é ilusória, não se fixa. Isso porque a imaginação da autora é tão poderosa, seu estilo tão preciso e irônico, que é preciso retornar aos contos, pensando: “é isso mesmo que eu li?”. Por mais que as histórias transitem pelos mais variados gêneros — fábulas, contos morais, histórias de guerra, casos de amor, narrativas fantásticas, surrealistas, realistas —, a marca de Petruchévskaia está em cada uma delas, uma espécie de ternura irônica, ao mesmo tempo desapegada e profundamente envolvida com suas personagens.
Saunders recorre a um dos temas mais utilizados na história da literatura, o tema do luto, da perda de alguém próximo. Abraham Lincoln vê o filho morrer ainda criança e, durante a Guerra Civil nos Estados Unidos da América, suspende todas suas responsabilidades para visitar a capela do cemitério noite após noite. Até aí, normal. A questão é que Saunders estica de tal modo a forma romanesca que a leitura de seu livro se torna — simultaneamente — um evento de profunda emoção (o luto, o pranto, a perda) e de profunda reflexão e assombro intelectual. Trata-se de uma narrativa polifônica, com elementos do teatro e do coro grego, mas com vozes heterogêneas, vindas tanto de anônimos quanto de personalidades históricas — Saunders usa e cita, de fato, uma bibliografia científica para dar conta dos fatos sobre Lincoln e a história estadunidense.
O livro de Baldwin é um clássico e justamente por isso nunca falha em impressionar, em deslocar a visão de mundo do leitor. Também parte de uma premissa tradicional, quase um clichê: a história do sujeito que sai dos Estados Unidos da América e se impressiona com Paris, com seus modos, seus habitantes, sua vida noturna, o arejamento dos costumes e das experiências. O jovem protagonista espera sua namorada chegar da Espanha e, nesse ínterim, se relaciona com um garçom italiano, Giovanni. Baldwin tira todo o proveito dramático possível de tal situação e acrescenta outra por cima, ainda mais pungente: Giovanni será executado pelo assassinato de Guillaume, dono do bar no qual trabalhava.
Trata-se de um livro de história, mas que pode tranquilamente ser lido como ficção policial. Um exemplar do gênero detetivesco que se detém em um dos casos mais célebres do século XX, a morte de Hitler. Ele de fato morreu? Não terá fugido para a Argentina? Caso tenha morrido, foi suicídio? Caso tenha sido suicídio, qual o método utilizado, arma de fogo ou veneno? Onde está o corpo? Brisard e Parshina aparecem como personagens em uma narrativa hipnótica, envolvente, na qual os detalhes se sucedem, as hipóteses se acumulam, com a investigação acontecendo nesse contexto um pouco onírico que é o da burocracia russa (ainda tão parecida com a soviética, dizem os autores). O leitor termina A morte de Hitler sabendo muito mais sobre os fatos e os acontecimentos – mas igualmente impressionado com a jornada quase picaresca dos dois pesquisadores.
Kelvin Falcão Klein é crítico literário, professor de literatura na UNIRIO e autor de Wilcock, ficção e arquivo (Ed. Papéis Selvagens, 2018). Escreve no blog Um Túnel no Fim da Luz.
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