Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

No dia 28 de março, comemora-se o Dia do Revisor, o profissional que verifica texto e imagem, corrige ortografia e erros gramaticais, checa padrões internos e também a coerência do texto. Após intervenções e correções – por parte do autor, editor, tradutor e preparador –, é o revisor o último profissional a lapidar o texto antes de o livro ser publicado. Para celebrar a data e esta profissão tão importante no processo editorial, convidamos três de nossos revisores para compartilharem experiências sobre o ofício.
Revisor de A montanha mágica e Carlos Drummond de Andrade
Acerca do incrível mundo preto e branco dos revisores
DO TERMO E DAS DEFINIÇÕES
1. Segundo os sábios doutores do idioma, a origem do termo “revisor” — assim como sua atividade — é controversa.
2. Revisor, do francês reviseur, ou do inglês revisor, é aquele que revisa. Nada mais lógico!
3. Contudo, é no dicionário lusitano que se encontra a verdadeira lógica: Revisar, visar novamente. Revisor, aquele que revê.
4. Já nos dicionários etimológicos, asseveram os doutos etimólogos: “re-visão, -visar, -visor, -vista, -vistar, -visto → VER”. É vero, viu?
5. Mas, como de praxe, é sempre na origem do termo que se encontra a verdade. Os latinos, que sabiam tudo e gostavam de passear, assim definiram a nobre classe: Revisor, o que volta para ver, o que visita outra vez.
DOS REVISORES
6. Partindo dessa máxima latina, devemos concluir que o revisor não pode ser cego, infelizmente. Eis o grande axioma! O fundo de garrafa já é aceito, mas convém, como ensinou Mário de Andrade, limpar as lentes com frequência, para não ficar cortando a torto e a direito as três primeiras letras de “bugalhos”.
7. Se o revisor tem muitos amigos, não se pode afirmar, pois ele quase nunca levanta o nariz de seus alfarrábios, e em sua presença é preciso estar em silêncio. Mas um inimigo é certo: se chama Titivillus, um demônio do medievo a quem se atribuem os erros ortográficos, e que está sempre acompanhado do seu bicho de estimação: a gralha.
8. Quem nunca sonhou que estava revisando páginas e mais páginas durante a noite inteira, a todo vapor, e ao acordar, para sua frustração, constatou que o calhamaço na mesa de trabalho continuava o mesmo?
9. Raimundo Silva, o Revisor, dá o seguinte conselho para quem quiser se aventurar no ofício: “Enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la. Porém, se a não corrigires, não a alcançarás. Entretanto, não te resignes”. Resignei-me desde que o ouvi.
10. O que ainda não inventaram foi a máquina de revisão para permitir que o revisor tome um cafezinho com os cronistas no boteco da esquina. Mas, pensando bem, é melhor assim, pois a concorrência seria desleal.
DOS GRANDES SÁBIOS
11. Noticiando a recuperação de d. Pedro II, que havia sofrido uma queda de cavalo, um grande sábio de ofício do Jornal do Commercio, em vez de dizer que o enfermo apareceu entre duas “muletas”, tascou o imperador entre “maletas”, e no dia seguinte, consertou para “mulatas”, ensinando aos apporellys e stanislaws como se faz.
12. Outro egrégio reviseur, tendo em mãos um livro do velho Machado para editar, não aprovou o elogio que o bruxo fazia, no prefácio da obra, a um amigo adjetivoso: “A afeição do defunto amigo a tal extremo lhe cegara o juízo...”. Então, possuído por Titivillus, o honorável profissional trocou o “e” de “cegara”, por “a”, melhorando a coisa. Uma simples letra nunca matou ninguém, nem mesmo um defunto.
13. Um dos maiores da espécie, compadecendo-se de um personagem de Edgar Allan Poe, o transformou de cataléptico em epiléptico, o que, convenhamos, foi muito melhor para o personagem, sobretudo nas mãos daquele corvo maquiavélico.
14. Encerremos o assunto sobre o Homo revisoris com a sábia reflexão de Luis Fernando Verissimo: “Defendo a tese de que o revisor tipográfico é o homem mais importante da cultura ocidental. Um revisor mal-intencionado pode acabar com a civilização como nós a conhecemos”. Amém!
Revisora de Raízes do Brasil e Sigmund Freud
Foi paixão à primeira vista. Desde então, decorridos mais de trinta anos – em todos eles trabalhando, entre outras editoras, para a Companhia das Letras –, não me imagino exercendo outra atividade.
Como em qualquer profissão, não sou infalível. E não há nada que me deixe mais frustrada do que deixar passar um pastel, uma ortografia errada etc. Nem todos os leitores entendem que por mais que o revisor se esforce, os olhos atentos não conseguem às vezes ver o óbvio.
O mais gratificante é receber o livro, cheirando a novo ainda, e ao abri-lo ver o nome na página de créditos. E também ver as prateleiras das estantes ficando repletas das obras revisadas. E aí bate o maior ciúme quando alguém pede um exemplar emprestado. Porque ao revisar e fazer no texto algumas intervenções, ainda que pequenas, nos apropriamos um pouco da obra.
Como muitos trabalhos home office, o de revisor também isola. Conheço os nomes de quase todos os freelancers que prestam serviço para editora, mesmo sem termos nos encontrado pessoalmente uma única vez. Nosso vínculo é o livro.
O trabalho de revisão me acompanha diuturnamente. Não consigo ler uma matéria na internet, um folheto, uma revista sem o olhar atento e crítico de que um termo não está adequado ou uma frase poderia ser melhorada.
Dizem que sou workaholic. Mas o que eu sou mesmo é apaixonada pela minha profissão.
Revisora de Grande sertão: veredas e O quarto de Giovanni
Foi uma grande amiga e atual companheira de trabalho quem me falou sobre a profissão de revisor. Juntas, fizemos testes, a princípio na Editora Brasiliense, onde considero que aprendi praticamente o essencial sobre as ferramentas necessárias para enfrentar esse complexo, por vezes difícil e incrível mundo dos livros. Desde então, venho trabalhando como freelancer em diversas editoras.
Transcorridos 34 anos de profissão, nunca deixei de atuar à distância como revisora nessa casa que muito me enriqueceu em conhecimentos, experiências e camaradagem. Aprendi a valorizar cada vez mais o trabalho de revisão, a desenvolver bom senso e profissionalismo. Tenho para mim que uma boa bagagem cultural é imprescindível, que é necessário atualizar-se sempre, e não só com eventuais mudanças em gramática e ortografia; mas é preciso, sobretudo, atenção, disciplina, saber dosar as intervenções no texto para não mutilá-lo, procurando não entrar em conflito com autor, tradutor e editora. Compreendi que humildade vem antes de qualquer coisa, que não devo me envergonhar de duvidar de meus conhecimentos, e que posso sempre recorrer a fontes de consulta quantas vezes forem necessárias, e com isso vou aprendendo a conhecer, respeitar e aceitar meus limites, que não são poucos.
Nesses muitos anos atuando na área de revisão, ainda estou sujeita a “puxões” de orelha por deslizes cometidos, e é impossível não ficar aborrecida e negar um mea-culpa. Em tais ocasiões, para me consolar, procuro lembrar que, sim, ninguém é infalível, que errar é humano, mas também que não posso me permitir absorver isso como justificativa para me acomodar e não continuar a dar o meu melhor. É o que me impulsiona, sempre, a prosseguir nessa profissão apaixonante.
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