Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

"Olhe para ele. Ele consegue costurar. Não é algo que ele pudesse fazer enquanto ainda estava vivo. Morte."
Repare na palavra "morte", ou melhor, na frase "morte": essa palavra sintaticamente sozinha, humilde ou arrogantemente expressiva. O que ela quer dizer e quem a está dizendo?
Ela parece dizer, contemplativa: "a morte é imponderável" ou "que saco essa coisa de morte" ou "como é que eu fui parar aqui?" ou "que palavra estranha". Não se sabe ao certo o significado dessa oração nesse contexto e a função é justamente, pela forma como ela foi colocada, deixá-la assim, maleável, disfuncional. Sabe-se, ou sente-se, entretanto, que ela exerce uma função crítica: estabelecer um peso, um contraponto grave ou de reclamação ao que se falava antes com naturalidade (costurar, ele consegue), uma ponderação cabal. Acabou o parágrafo e, junto com ele, um sonho de estar vivo.
A frase está escrita no famoso "discurso indireto livre", aquilo que todo mundo gosta de dizer mas ninguém sabe muito bem direito o que é e muito menos como e quando usar. As duas frases anteriores estão claramente escritas em discurso indireto: "ele consegue" e "não é algo que ele pudesse fazer enquanto ainda estava vivo". Nelas, o narrador em terceira pessoa domina a cena, a trama e, aparentemente, o personagem. Deixa que eu sei dele, até o que ele faz quando está morto e o que fazia quando vivo. Tudo isso, ainda por cima, precedido de uma primeira frase no imperativo, "olhe para ele", em que o narrador, não contente em dominar o personagem, ainda domina um interlocutor (leitor, outro personagem?). O narrador brilha aqui, é um rei. Mas vem o "morte" e um reino parece se deslocar para o lado. É como se a "morte" tivesse entrado de supetão na narrativa, como se ela tivesse invadido o controle do narrador e se imposto a ele: "agora entro eu". Claro, diante da morte não se brinca. "OK", o narrador concordou, "você entra aqui".
Quem diz "morte"? É claro que o narrador, pois é ele quem conduz a história e constata, abnegado ou surpreso: "Morte". Mas é claro que é também o personagem que, depois de dado como morto pelo narrador, ousa tomar a voz de empréstimo ou por puro roubo e reclama para si: "Morte". E é claro que é também a própria morte que penetra na história e se impõe: "Eu"; não há como fugir de mim.
O discurso indireto livre, que poderia se chamar "livre pensar é só pensar" ou "ninguém manda em mim" é essa multivocidade inadvertida, um sopro de ar no comando de uma história, a indecibilidade sobre quem conta e o que se quer dizer, uma fraqueza bem vinda no controle das coisas. Para o escritor, é também uma libertação, embora difícil e, para o leitor, uma alegria desafiadora. O que faço aqui?
Ali Smith, autora do trecho, extraído do romance Autumn, ainda sem tradução no Brasil, é dessas escritoras que acolhem e praticam a perda do eixo narrativo. Eu, obedientemente, a invejo e copio.
Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.
Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.
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