ERRATA: "Trincheira tropical", de Ruy Castro
Errata no livro "Trincheira tropical", de Ruy Castro, que narra a Segunda Guerra Mundial no Rio

Foto: kool99/ GettyImages
Cuidar de um velho doente. Um velho doente incomoda a todos. É preciso visitá-lo; ele é rabugento, reclama da casa, de dores, dos remédios, dos efeitos colaterais, do abandono, da dependência; sente-se culpa pelas poucas visitas ou pelo desejo, irrefletido, de que ele morra logo. O velho reclama da vida e diz querer partir logo, daqui para o outro lado. Mas quando a morte ameaça se aproximar, ele se aferra à vida com desespero. Um velho doente é incoerente. O que o velho doente quer, afinal? Já cuidamos dele com dedicação, damos a ele tudo o que quer e ele nunca fica satisfeito. Esquece tudo, não nos agradece e ainda por cima nos acusa. Um velho doente e quieto também não é muito melhor. Seu silêncio é opressivo e vitimizante. Seria melhor se gritasse. Um velho simpático, por sua vez, dá pena. Fica ridículo, querendo parecer mais jovem. Como pode ser simpático, se está doente? Ele finge por vaidade. Como é possível um velho doente ainda ser vaidoso? E quando se enfeita, pior, é patético.
Um velho doente é louco e parece um bebê, com seus caprichos e manhas. Nada está bom para ele. E, acima de tudo, um velho doente fica falando lugares-comuns como se fosse sabedoria. Diz que o tempo não é nada, que a vida é como uma piscadela, que logo também nós seremos velhos, que as coisas não têm significado, nem são tão importantes quanto parecem.
Um velho doente é a coisa em si. Um velho doente te olha e você não o vê, como não se pode ver a verdade. A morte está depositada aí, na tua frente e você morre mais um pouco ao vê-la assim, como um corpo, com pernas finas, pelancas na barriga, fralda, movimentos lentos, cuspes, roncos, visão prejudicada e a pergunta repetida: "hã?". A morte, parada no velho doente, diz: "hã"? Não queremos ouvir a pergunta da morte. Um velho doente é minha saúde, todos meus esforços, meus exercícios, meus cremes, minha pele dura, escorrendo no tempo. Um velho doente é uma afronta ao tempo que quero adiar ou cancelar. Sua pouca memória ofende minha pressa de fazer mais coisas, mais coisas, mais coisas. Um velho doente é minha cegueira, minha doença, meu fracasso.
Um velho doente é nosso colo desfeito, nossa língua incapaz, nosso buraco aberto. Um velho doente é o que não sei.
Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.
Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.
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