Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Foto por Rodrigo Lins
Quando publica Contra a interpretação, em 1966, reunindo seus principais ensaios dos anos anteriores, Susan Sontag era uma escritora em início de carreira, tendo estreado em 1963 com o romance O benfeitor. “Muitos críticos expressaram espanto diante do fato de que uma jovem obscura, então com apenas 31 anos, tivesse produzido uma obra de tamanho alcance e maturidade”, escreve o biógrafo Benjamin Moser sobre Contra a interpretação. “O livro fascina com uma erudição que era impressionante na época e continua sendo hoje, e que levanta a questão de como e onde essa erudição foi adquirida”.
Sontag propõe em seu livro uma mistura peculiar de interesses, registros estilísticos e apreciações estéticas: vai da literatura de nomes tradicionais como Camus, Sartre e Artaud até o cinema de Godard, Bresson e Resnais, passando pela antropologia de Claude Lévi-Strauss, filmes de ficção científica, até chegar em nomes em ascensão da arte contemporânea, como Mark Rothko e Frank Stella. A escritora transforma seu gosto eclético em um procedimento crítico, levando o leitor a um exercício mental constante, que consiste em aproximar e colocar em tensão artefatos culturais das mais diversas fontes (algo que o campo dos Estudos Culturais propõe quase simultaneamente, se lembrarmos que Richard Hoggart funda o Centro de Estudos Culturais Contemporâneos em 1964).
No precioso texto incluído nesta edição como posfácio, “Trinta anos depois...”, Sontag escreve sobre essa característica que é o motor de Contra a interpretação: “Minha ideia de escritor: alguém interessado em ‘tudo’. Sempre tive muitos tipos de interesses, de modo que, para mim, era natural conceber a vocação do escritor dessa maneira”. Nesse breve texto (escrito em 1996 para acompanhar a reedição de seu livro), Sontag enfatiza como Contra a interpretação é, ao mesmo tempo, produto de seu tempo – os anos 1960, a guerra do Vietnã, a nouvelle vague – e um permanente estímulo à imaginação. O que permanece é o fervor com o qual a autora atacava seus temas, um entusiasmo contagiante que pode servir para várias gerações (nesse ponto podemos pensar se o ensaísmo inicial de Sontag não carrega a mesma potência “adolescente” que encontramos na obra de Julio Cortázar, por exemplo – que publica O jogo da amarelinha em 1963).
Cada ensaio de Contra a interpretação oferece uma experiência dupla ao leitor: permite o contato com um entusiasmo crítico modelar e veicula uma série de informações e juízos críticos frequentemente instigantes. “Os filmes de Godard tratam de ideias, na melhor acepção, mais pura e sofisticada, em que uma obra de arte é capaz de tratar ‘de’ ideias”, escreve Sontag, em uma espécie de declaração velada de sua própria postura. Ou ainda, no ensaio “O Antropólogo como Herói”: “O antropólogo não é um mero observador neutro. É um homem que tem o controle e explora, até conscientemente, seu alheamento intelectual. É uma technique de dépaysement, como Lévi-Strauss designa sua profissão em Antropologia estrutural”.
Mais uma vez, Sontag não fala exclusivamente do tema que está tratando. Essa técnica de “deslocamento” ou “desenraizamento” é um esforço permanente do indivíduo que lê, pensa, escreve e critica, explorando continuamente seu “alheamento intelectual”, seu desejo de abarcar distintas perspectivas. Contra a interpretação é um relato do que é possível alcançar a partir do ponto de vista da tolerância e da curiosidade intelectual.
Kelvin Falcão Klein é crítico literário, professor de literatura na UNIRIO e autor de Wilcock, ficção e arquivo (Ed. Papéis Selvagens, 2018). Escreve no blog Um Túnel no Fim da Luz.
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