Ilustração por Maria Eugênia
- (Peço desculpas se este post for publicado em outubro. Sou acometida pelo fato de que me perco o que vai ser publicado quando. Para piorar o anacronismo incorrigível, recentemente li um artigo da Vox (em inglês) sobre como a pandemia alterou nossa percepção do tempo. Um senso de que o tempo nos escapa, os dias tão rápidos, tantas tarefas, mas ao mesmo tempo, quando é que vai acabar essa desgraça? Dito isso, vamos ao tema que tem me ocorrido em setembro e estou escrevendo em setembro e não sei quando será publicado.)
- Foi em meados de abril deste ano, que parece quinhentos meses atrás. Um amigo foi internado em uma clínica psiquiátrica — várias coisas, inclusive risco de suicídio. Odiava a clínica, o cheiro, o estado das coisas, não poder sair para o pátio. Afinal, não era uma clínica de filme. Era a clínica que o seguro cobria. E, a cereja de chuchu no banana split de ansiedade, ele temia pelo coronavírus. A clínica tinha restrições esquisitas com horário e quantidade de ligações. Pude acompanhar de perto a dinâmica que foi surgindo — os amigos, familiares, pessoas que ligavam e iam trocando mensagens entre si quando conseguiam falar com ele. Minha vez coincidiu com a Páscoa. Eu odeio falar ao telefone. Mas ele devia odiar ainda mais não ter acesso a um celular na clínica.
- (Faço acompanhamento psicológico — em alguns momentos mais e outros menos — desde quase sempre. Quando noto que estou caindo em padrões de pensamento/emoções/comportamentos que não me ajudam, aumento a frequência da terapia. Ou volto. Sei que falo bastante disso. Usando a imagem clássica/clichê do cão negro que se chamava depressão, há momentos em que o cão é um diabo da Tasmânia. Em outros, é menor que um hamster. Claro que nem sei se é apenas um cão preto: tenho um cão preto chamado depressão, um gnomo loiro chamado ansiedade (que fica montado), que se alimentam de uma ração de fobia social e fazem cocô de sintomas de Transtorno Obsessivo Compulsivo nos meus sapatos. Mais que um cão negro que se chama depressão, tenho um zoológico que se chama complexidade emocional.)
- Liguei para meu amigo internado. Falar ao telefone parece ser a dificuldade da minha geração. (Isso e todos os outros problemas que estamos herdando, junto da guerra fracassada às drogas, aquecimento global e neofascismo.) Atendeu um desconhecido, funcionário, que passou a chamada. Conversei pelos quinze minutos que me eram permitidos. Foi estranho.
- Esse amigo não tinha como saber quem ligaria pra ele, porque não havia um cronograma. Cada vez que o enfermeiro chamava para atender, era uma surpresa. Poderia ser a mãe de novo ou poderia ser eu (que liguei uma vez só). Ele me disse que o Luzes de emergência se acenderão automaticamente foi um dos livros que optou por levar. O livro era de ajuda, ele disse. Quando a gente escreve ficção, a gente não acha que está escrevendo ajuda.
- Foi Marina Colasanti quem me disse uma vez que ficção é a melhor autoajuda. Disse que O Deus das pequenas coisas, de Arundhati Roy, valia mais que qualquer best-seller.
- Eu o ouço falar. Contar experiências. Dizer o que a psiquiatra disse e a opinião dele a respeito. Eu imagino o medo de alguém. Cercado de desconhecidos. Eu me sinto ridícula pelo desconforto de fazer uma ligação.
- Mais do que isso, eu me dou conta de como aquela situação é nova. É nova para mim, é nova para ele. Ouvindo meu amigo que tinha um livro como a coisa à qual ele podia se agarrar, entendi. Entendi a coragem que existe em pedir ajuda. Na coragem que existe em mostrar a vulnerabilidade de si, de dizer: “eu me sinto sozinho”.
- Eu me lembro de como Os sofrimentos do jovem Werther foi o livro mais marcante da minha adolescência. Um livro triste, que acaba pior que a história de meu amigo. Um livro que me trazia alegria pela compreensão, pela identificação. O romantismo que me forçou a pensar: eu também, Werther, eu também. Esse “eu também” me dava a certeza de que eu não estava sozinha.
- Estou dizendo que outras maneiras de lidar com depressão sejam “falta de coragem”? Não. Estou dizendo que pedir ajuda requer coragem. Mesmo que seja pedir ajuda a um livro, que responde apenas com a ficção. Se eu me sinto como Werther, eu talvez precise de ajuda para não acabar como Werther. O tal entendimento emocional.
- (Até sinto culpa das batalhas com meu zoológico emocional. Um pouco de culpa, um pouco de vergonha. Ainda o clichê de “mas você tem tudo.” A posição de privilégio em que estou como um todo. A posição de privilégio que é ter educação e tempo para o autoconhecimento e, com isso, identificar. E é um privilégio poder então acessar ajuda. O privilégio de identificar. Mas antes me culpar por esse privilégio: por que outras pessoas não têm esse acesso?)
- Um exército vence mais do que uma pessoa sozinha. Se você sente que não consegue sozinho, encontre quem pode ajudar. Às vezes ficção ajuda; às vezes, medicação. Existem zonas no meio disso.
- O primeiro passo é entender que depressão não é bonita, não ajuda com criatividade, não é “necessária” para “aprender uma lição”. O ato de se sentir mal gera apenas sentimentos piores. Já falei sobre essa falácia no post aqui no blog sobre escritores amarelos.
- Às vezes, temos um sentimento. E parece que nós só somos aquele único sentimento. Estamos tristes e esquecemos que já estivemos alegres, com vergonha. A gente já sentiu outras coisas.
- A literatura nos ajuda a ver outras perspectivas, e isso mata a solidão. Não sei se cura a depressão. Um livro que escrevi sobre ser um canoense desanimado ajudou uma pessoa e a depressão dela.
- Para quando os livros não bastam, existe tratamento psiquiátrico gratuito pelo SUS. Existem os centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e até algumas Unidades de Saúde Básica (UBS) recebem pessoas deprimidas. Universidades públicas têm atendimentos a preços populares. No cenário pandêmico ou em regiões mais distantes, há sites de terapia online, como a Vittude, também com opções mais acessíveis.
- Victor Heringer se foi cedo demais, depois de se digladiar com transtornos psicológicos e medicamentos por bastante tempo. Já fiz 19 notas sobre Victor Heringer. Apesar de não o conhecer em pessoa, a memória dele fica como um dedo do pé quebrado que nunca cicatrizou bem. A cada passo, uma dor, uma tentativa de evitar. Mas a lembrança ali.
- Uma pessoa que eu só conhecia através dos livros se foi. Uma pessoa que meus livros ajudaram ficou. Uma pessoa que só existe em livros, meu bom amigo Werther, se foi. A ficção como o nó sem sentido entre as quedas, a intensidade para um padrão. A humanidade como extrato de ficção/ções. A depressão como extrato de humanidade. E nós aqui.
- E se você está em dúvida: fique aqui entre nós.
- Estou muito orgulhosa de todos nós.
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Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados (2018) e Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.