ERRATA: "Trincheira tropical", de Ruy Castro
Errata no livro "Trincheira tropical", de Ruy Castro, que narra a Segunda Guerra Mundial no Rio

Foto por Faris Mohammed
A esperança é a única coisa que restou na caixa aberta por Pandora, de onde saíram todos os males do mundo, esses que nos assolam até hoje e além. E ela, a esperança? Ela também é um mal que sobrou ou seria o único bem a habitar a caixa?
A esperança é a última que morre. Não sei se isso faz dela um bem ou um mal. Afinal, algo que nunca morre é opressivo e assustador. Não gosto de pensar que, depois da minha morte, depois do fim do mundo como o conhecemos, restará lá a esperança, vivíssima, observando – compadecida ou sádica – os rastros da nossa civilização falida. Imagino-a gorda, alimentada por nós, que toda a vida repetimos que “é preciso alimentar a esperança”. Adiposa, mergulhada numa cadeira estofada, regalando-se com mais salgadinhos, mais refrigerante, mais sonhos humanos.
Spinoza não gostava dela – considerava-a o outro lado, inevitável, do medo: dois amigos inseparáveis. O poder precisa de ambos: incute medo para manter o povo sob controle e deixa-os ter esperança, sabendo que ela é inútil. A esperança seria, assim, só a contraparte conveniente do temor, para que o status quo continue ileso e dominador.
Poetas, entretanto, a cultivam. Como se ela não fosse somente um afeto consolador ou resignado, mas também fonte de transformação ela mesma, uma faísca de radicalidade. No meio de uma cidade nauseada e nauseante, por exemplo, nasce uma flor no meio do asfalto: “É feia, mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Ou, como no poema de Maya Angelou: “Eu sou o sonho e a esperança do escravo. Eu me levanto”. Quantos de nós, aqui em nosso presente que é o futuro de nossos antepassados, não representamos esperanças que pareciam meramente reconfortantes em sua época?
E agora, enlatados em nossas casas por uma pandemia que mal merece o reconhecimento de nossos governantes e paralisados com a irrupção de males cuja popularidade nem conhecíamos, na iminência da eleição do mal maior – a fonte daquela caixa é inesgotável – não sabemos se a esperança é boa ou ruim. Ariano Suassuna aconselha um realismo esperançoso e Albert Camus a designa como a origem de todos os sofrimentos. Quando ouço alguém dizer que tem esperança de que o Brasil recupere sua face alegre, rio da ingenuidade. Mas quando ouço dizerem que o país nunca sairá do lodo em que se meteu, fico irritada com tanto derrotismo.
Mas sou escritora e, como diz David Grossman, o escritor gosta de olha para dentro do sol. Dói, ofusca e deturpa e ele continua olhando. Ou por isso mesmo. Estou olhando para ele e já estou ficando cega. No meio dessa obumbração, misturo substantivos e adjetivos desconexos, me entrego a sintaxes estranhas, mobilizo palavras antigas e futuras: “Seremos sim, astronautas. Bussolaremos o alvo, vivas e musculosas, galopando sobre o asfalto. Seremos flores sem vingança, distribuindo pólen nos olhos vazios. Pupilas emergirão atentas e vagabundearemos juntos e álacres pelas florestas refeitas”.
Não sei se isso é esperança. Mas algo, no estranhamento dessa combinação inusual de palavras, supera a esperança e vai na direção do gesto, talvez possibilitando uma esperança mais dinâmica, como se em sua ponta da houvesse uma flecha. Quem sabe a melhor palavra, então, seja, não esperança, mas espetança. Fico com ela.
Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.
Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.
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