Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Kelvin Falcão Klein*

O último romance de Bernardo Carvalho, O último gozo do mundo, é identificado no subtítulo como “uma fábula”, ou seja, do verbo latino fari, “falar”, indicando que a fabulação é uma espécie de decorrência natural da fala. Nada mais apropriado, uma vez que a grande “revelação” do romance é justamente o momento em que uma criança aprende a falar e, com isso, se torna apta a organizar a narração que agora acompanhamos no livro.
A pandemia é central para a história e, ao mesmo tempo, apenas uma cortina de fumaça: logo no início da quarentena uma mulher engravida, perde os pais para o vírus e o contato com o pai de seu filho; tempos depois, já na fase de “retomada”, a protagonista viaja com seu filho, tendo como destino um retiro no interior do Brasil, onde vive um homem que adquiriu a capacidade de prever o futuro depois de sobreviver à peste (em troca de já não conseguir mais lembrar nada de seu passado).
O último gozo do mundo se posiciona em um espaço intermediário entre o último livro de Don DeLillo, Silêncio, e a trilogia de J. M. Coetzee sobre Jesus, com destaque para A infância de Jesus. Isso porque DeLillo também aborda a pandemia e a instabilidade do futuro, sem abordar, contudo, as sofisticadas repercussões filosóficas sobre o “recomeço da humanidade” que Coetzee elabora. O romance de Bernardo Carvalho, além de apresentar uma fábula sobre a constituição da linguagem e da literatura, articula uma sondagem do período pandêmico com uma projeção enigmática sobre uma época (e uma sociedade) ainda por vir.
Certas palavras se destacam e ajudam a delinear a atmosfera muito específica que Bernardo Carvalho constrói ao longo da narrativa: “peste”, “gozo do mundo”, “resistência”, “oráculo”, “confinamento”, “futuro”, “canalha”, “manipulação”, “narrativa”. O romance é construído a partir do paralelismo de duas estruturas conflitantes: de um lado, a história corre cronologicamente, especialmente a partir do destino de sua protagonista, a professora de sociologia que engravida, tem seu filho e parte com ele na viagem em busca do vidente; de outro lado, a história é errática e picotada, apresentando às vezes cenas aparentemente independentes (a conversa entre uma aluna e um professor, uma digressão sobre Alcibíades e Sócrates), que terminam por encaixar de forma sutil no todo do romance (que nunca chega a se apresentar definitivamente como um “todo”).
O principal trunfo de O último gozo do mundo está em sua discussão (no curto-circuito que propõe) sobre as relações entre o tempo do mundo e o tempo da literatura: “Muitos anos depois essa criança escreveu a história da viagem que fez com a mãe, quando ainda não falava, para ver o futuro”. Uma história vem do futuro com a lembrança de uma viagem do passado, cujo objetivo era o de conhecer um futuro possível, agora inacessível. Quantos destinos ficaram para trás, obliterados, na insensata marcha na qual estamos todos inseridos? Se a história do mundo não fosse tão perversa, seria maravilhoso viver, escreve Hannah Arendt em 1952 (é a frase que Ann Heberlein usa como epígrafe em seu livro recente sobre a autora). Diante dessa perversidade, um caminho possível é tentar extrair o “último gozo do mundo” de cada instante que ainda nos caiba experimentar.
Kelvin Falcão Klein é crítico literário, professor de literatura na UNIRIO e autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Modelo de nuvem, 2011) e Wilcock, ficção e arquivo (Papéis Selvagens, 2018). Escreve no blog Um Túnel no Fim da Luz.
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