Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Parte do poema visual criado por Guilherme Gontijo Flores e Daniel Kondo, do projeto Coestelário.
Leio hoje que Nelson Freire morreu. Também fico sabendo que 9 pessoas morreram em um desabamento de uma gruta e que mais 25 suspeitos foram mortos pela polícia em Minas Gerais. Uma morte por doença, de uma pessoa famosa e respeitada; 9 mortes de anônimos por acidente e 25 mortes por bala, de possíveis criminosos. Três formas de morrer, três notícias, 35 mortos. Fico me perguntando onde alojar a morte, onde alojar as mortes no meu corpo, no cérebro. Porque, ao mesmo tempo, precisava pensar no almoço, a campainha tocava e eu estava mais preocupada com a preparação de uma aula. Mas espera, como assim, o almoço? Como assim Nelson Freire, anônimos e criminosos?
Não sabemos, não sei o que fazer com as mortes repetidas, acumuladas e simultâneas, de ordens e grandezas diferentes e de pessoas que têm também diferentes importâncias no mundo e na vida de cada um. Fico chocada com a queda da gruta e em pensar que essas nove pessoas que eu não conhecia morreram dessa forma, mas não sei o que fazer com isso. Passa quase instantaneamente. Já com os 25 suspeitos, a reação é mais uma vez pensar que é uma chacina, que não é possível que nem um único policial tenha sequer sido ferido. Passa quase instantaneamente. Já com Nelson Freire fico entristecida, enquanto faço outras coisas continuo pensando na perda para a música e lembrando das vezes em que o vi tocar, mas rapidamente esqueço. Passa quase instantaneamente.
A morte precisa de tempo e precisa ser recebida, mas nós apenas a observamos como mais uma mercadoria entregue pelas redes e pelos jornais. Essa morte-coisa, morte-objeto é recebida como mais um dado acumulativo que a memória registra e que vai diretamente para o porão, quando não para o lixo da mente. É uma violência que, certamente, retorna em forma de melancolia silenciosa ao longo dos dias, minando minhas atividades sem que eu saiba o porquê. Quando nem sei, no meio do preparo de uma comida, me sinto solitariamente cansada e uma preguiça de tudo se abate sobre o macarrão. É a morte, são as mortes que eu não recebi.
É preciso ser passivo com a morte: estar com ela, demorar-se nela, deixar que ela se demore em nós. Sentir, pela demora, que também cada um de nós morre um pouco e de formas diferentes com todas essas mortes, cada uma de um jeito e por uma causa distinta. Saber que a pandemia pode estar passando, mas que o que ela causou em cada um não deve e não pode passar.
É preciso morrer para estar vivo. Isso torna a vida mais digna e mais lenta, valores que surpreendentemente se complementam.
Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.
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