Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Em fábula realista, escritora moçambicana enfrenta as dores de uma tradição patriarcal com a união entre mulheres.
O romance de Paulina Chiziane é uma coreografia de encontros improváveis entre mulheres, suas culturas e tradições. A narrativa é conduzida por Rami, uma mulher instruída que vive em Maputo, capital de Moçambique, e descobre que o marido Tony — um comandante da polícia local — mantém diversas amantes, casas e filhos espalhados pela cidade. Entre brigas, ciúmes e rivalidades, Rami entende que quando as mulheres deixam de se ver pelos olhos do patriarcado e se reconhecem mutuamente, o mundo se transforma.
“Niketche — uma história da poligamia” foi publicado em 2002, cerca de dez anos após o fim da guerra civil que devastou Moçambique (1992). A história escrita por Chiziane, que participou ativamente no movimento de libertação que conquistou a independência do país, é fruto de um momento de reconstrução nacional, marcado por choques culturais e a forte presença do imaginário feminino em formação dentro de uma nova identidade pós-colonial. Em 2004, o livro foi publicado no Brasil em uma primeira edição pela Companhia das Letras.
O título do livro remete à uma dança de iniciação feminina da região da Zambézia, norte de Moçambique — o niketche — associada ao erotismo, transmissão de saberes e celebração. É um aprendizado ancestral que desmonta o moralismo sexual, valorizando o desejo feminino. O romance faz da dança uma metáfora: Rami aprende passos novos para mover-se num terreno onde tradição e modernidade, cidade e campo, sul e norte, cristianismo, islamismo e cosmologias locais se enroscam.

Poligamia e sororidade
A obra de Chiziane aponta as tensões entre a lei do Estado, herdeira do colonialismo com a monogamia como discurso oficial; e a vida prática, onde a poligamia impera como arranjo de poder e privilégio masculino. Logo no início da narrativa, a protagonista Rami, casada com Tony, demonstra sua insatisfação com o marido, que nunca aparece em casa. Ela descobre, então, uma segunda esposa, Julieta. Depois uma terceira, Luísa, depois Saly e, por último, a mais jovem, Mauá. Além das cinco mulheres, Tony também teve 16 filhos. Nos primeiros encontros com essas mulheres, Rami sofre e entra em conflitos e brigas. Ela e Luísa chegam a ser presas por uma luta corporal na rua. “Durante dias e dias procuro ouvir a voz da minha consciência. Procurar uma solução para o meu problema que se complica a cada dia. Os conselhos sentimentais falharam. As guerras com as minhas rivais só me trouxeram problemas de saúde e aborrecimento”, conclui Rami, que vai buscar conselhos com sua tia Maria, que lhe conta sua experiência com a poligamia. “Cada mulher tinha sua casa, seus filhos e suas propriedades. Tínhamos o nosso órgão - assembleia das esposas do rei - onde discutíamos a divisão do trabalho… Havia muita liberdade, muita liberdade. As damas não passavam carência de espécie alguma. Nem afetiva”, relata a tia, que é questionada por Rami, ainda confusa. “Mesmo assim, para quê tanta mulher e tanto filho?”. Tia Maria explica que a virilidade do rei era medida pelo número de mulheres e filhos. Rami não se convencia com as explicações da tia, mas, estranhamente, resolveu aceitar o convite de Luísa, amante de seu marido, para o aniversário de um de seus filhos com Tony. Dessa vez, sem briga.
Aos poucos, Rami foi conhecendo uma a uma e ao se encontrarem, as mulheres vão deixando de ser sombras e ganham rosto, história e necessidades. Negociam regras, repartem recursos, cuidam de filhos, pressionam Tony por reconhecimento e justiça. Todas se tornam esposas e cada uma recebe o marido por uma semana, em um revezamento. Reuniões são feitas regularmente para tomadas de decisão e trocas de informação. As mulheres também criam uma economia solidária. Passam a realizar trabalhos como venda de roupas e salão de beleza, o que lhes garante maior poder de decisão. Não é uma sororidade ingênua: há ciúmes e disputas, mas também uma ética de sobrevivência. O que o romance revela é a hipocrisia social que normaliza o harem clandestino desde que a dignidade feminina seja o preço. Ao expor o arranjo, Rami e as demais mulheres retiram o segredo que o sustenta e tomam as rédeas de suas vidas, apesar de ainda sofrerem com as submissões e humilhações da sociedade patriarcal em que vivem.
O corpo feminino
Cada uma das mulheres deste casamento poligâmico traz uma visão de mundo, uma experiência de vida e um repertório de saberes. Algumas são mais jovens e pragmáticas; outras mais velhas e guardiãs de ritos; há as que dominam o orçamento, as que dominam a cozinha, e as que dominam a sedução e um conhecimento profundo do próprio corpo, como Saly e Mauá, que vem da cultura do norte de Moçambique, onde nasceu o niketche. “Todo homem é criança nos nossos braços. Transmigra. Esquece a vida e a morte, porque o corpo da mulher é eternidade”, afirma Mauá.
Chiziane traz o corpo feminino negro como território de saber e prazer. Nas conversas, nas danças e nos rituais, as personagens reclamam o prazer como direito e conhecimento. Através dessas trocas entre as mulheres, Rami deseja conhecer o seu corpo como nunca antes. “Vou à casa de banho e passo a mão por baixo de mim mesma. Nem escamas. Nem lulas. Nem tentáculos de polvo. Apenas uma concha quebrada onde o vento passa sem canto nem eco. Uma concha insípida, com sabor de água que nem mata a sede”.
A falta de intimidade das mulheres com o próprio corpo, o desconhecimento do prazer feminino, é apontado também como resultado dos processos de colonização, como afirma a personagem Saly à Rami. “Não tens culpa - Vocês do sul deixaram-se colonizar por essa gente da Europa e os seus padres que combatiam as nossas práticas. Mas que valor tem esse beijo comparado com o que temos dentro de nós? Depois trouxeram a pornografia, essa estupidez só para enganar os incompetentes e entreter os tolos”.
Pluralidade de linguagens, culturas e vozes
O casamento de Tony com suas cinco esposas é um microcosmo da nação Moçambicana: nele convivem diferentes culturas, memórias de guerra e familiares, heranças coloniais e religiões diversas. Com uma “oralidade escrita”, marca da autora, “Niketche” mistura confissão, fábula e crônica social. Paulina Chiziane cria um texto que ri para não chorar, e que politiza a vida doméstica sem perder o afeto.
A voz de Rami é direta e, às vezes, até sarcástica, como quando faz desabafos e dialoga com o espelho do seu quarto - o que nos remete imediatamente aos contos de fadas. “Diz-me, espelho meu: serei eu feia? Serei eu mais azeda que laranja-lima? Por que é que o meu marido procura outras e me deixa aqui? O que é que as outras têm que eu não tenho?”.
Mesmo quando escreve sobre dor e humilhação, o humor não relativiza nada, mas desarma. Muitas das páginas mais políticas são também as mais cômicas, porque revelam, pelo exagero, a lógica absurda que rege o privilégio masculino. Como quando Tony é dado como morto e a tradição, beirando um surrealismo, diz que Rami, sua primeira esposa, não deve ficar com nada. “Depois do funeral, a divisão de bens. Carregam tudo o que podem: geleiras, camas, pratos, mobiliário, cortinados. Até as peúgas e cuecas do Tony disputaram. Levaram quadros, tapetes da casa de banho. Deixaram-me as paredes e o teto, e dão-me um prazo de trinta dias para abandonar a casa”.
“Niketche” é um romance que desmonta certezas sobre amor, casamento, lei, costume, corpo e poder. A obra ocupa lugar importante na literatura moçambicana e lusófona contemporânea, colocando no centro a voz de uma mulher que constroi, com outras, um novo modo de narrar e existir. É uma história que não se contenta em denunciar, mas também elabora saídas, mesmo que parciais e provisórias, para uma vida mais justa.
Texto por Anna Luiza Lima Guimarães.
Niketche: Uma História de Poligamia está entre as obras indicadas para o vestibular da UEL - Universidade Estadual de Londrina.
✨ Já conhece a seção de Vestibulares no site da Companhia na Educação?
🧩 Por lá, você encontra:
✅ Obras do nosso catálogo que são leituras obrigatórias nos principais vestibulares do país
📚 Materiais de apoio sobre os livros e dicas de como a literatura é cobrada nas provas
🌐 Tudo reunido em um só lugar, pensado para facilitar seu planejamento e ampliar as possibilidades de mediação literária com os estudantes.
🔗 Acesse agora e compartilhe com sua rede!
📍 Clique aqui para conhecer a seção de Vestibulares.
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Rádio Companhia apresenta "As narradoras": minissérie em áudio sobre vozes literárias femininas do século XX
Como se preparar para a Conferência do Clima, que este ano acontece em Belém