Quadriculando o círculo do romance pós-guerra: Epílogo brasileiro

08/11/2017

Por Silviano Santiago

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Tal é a importância de Erico Verissimo na formação dos estudos de literatura brasileira nos Estados Unidos que, em 1962, quando fui ensinar literatura luso-brasileira e língua portuguesa na Universidade do Novo México, em Albuquerque, o livro de texto escolhido pelo Romance Languages Department, complemento do aprendizado gramatical, era o Gato preto em campo de neve, numa edição norte-americana em português.

Erico sempre traduz da língua inglesa, dando preferência a autores de menor porte, como o prolífico britânico Edgar Wallace (1875-1932), que compete, ou competia, no circuito comercial com Agatha Christie e Georges Simenon. Contraponto, de Huxley, e Homens e ratos, obra-prima de Steinbeck, são exceções à regra na longa lista de traduções assinadas por Erico. Pelo britânico Huxley e o norte-americano Steinbeck e principalmente por ter sido o notável e corajoso editor na prestigiosa Editora Globo é que ele se afirma como o principal responsável pela introdução da boa prosa ficcional norte-americana no Brasil.

No meu caso pessoal, é um curto romance de Horace McCoy, They shoot horses, don’t they?, traduzido por ele em 1947 com o título de Mas não se mata cavalos?, que me apresenta nos anos 1950 o potencial do estilo proposto por figuras do porte de Hemingway, Steinbeck e Fitzgerald, como perfeitamente compatível com a língua portuguesa falada no Brasil. A bater na mesma tecla está o conto “O jovem audaz no trapézio volante”, de William Saroyan, traduzido por João Cabral de Melo Neto e publicado em suplemento literário carioca nos anos 1950.

É bom, no entanto, não esquecer que a cultura norte-americana – no seu todo – entra de maneira muito mais eficiente e acachapante pelos meios de comunicação de massa, hoje designados como pop. Duas questões críticas se destacam: no tocante à questão do cinema feito em Hollywood, o esvaziamento do cinema nacional e, em referência às histórias em quadrinho, a importação dos flans dos comic books. Ambas inflamam os espíritos críticos do domínio cultural norte-americano nos trópicos. Com o correr dos anos, a reação se torna mais violenta e poderá ser traduzida pelo grito de célebre slogan pelos estudantes nos movimentos de caráter político: Yankee, go home!

De modo premonitório, tratei da questão pop em ensaio publicado em novembro de 1976 na Revista Vozes, intitulado “Brasil-Estados Unidos: relações culturais de dependência”. O então comunista Carlos Lacerda e o partidário Dyonélio Machado, autor do notável romance Os ratos, são os que, durante a guerra e no pós-guerra, mais rejeitam a entrada nefasta no Brasil da cultura pop norte-americana.

Terminada a guerra e a ditadura Vargas, Erico Verissimo entrega o bastão literário ao jovem Fernando Sabino. Em 1946, o mineiro se forma em Direito, pede licença como funcionário público e embarca com Vinicius de Moraes para os Estados Unidos. Passa a residir em Nova York, centro da elite intelectual norte-americana. Por ter assumido o posto de vice-cônsul do Brasil em Los Angeles, Vinicius toma caminho oposto. Passa a optar pela cultura pop, sem desprezar, evidentemente, a poesia lírica. Fernando trabalha no Escritório Comercial do Brasil e depois no Consulado Brasileiro. Já em 1947, envia as primeiras crônicas de Nova York para o Diário Carioca e O Jornal, do Rio de Janeiro, que são transcritas por diversos jornais do resto do país.

Em 1950, as crônicas sobre sua experiência norte-americana são reunidas na pouco lida e excepcional coleção A cidade vazia. De Vinicius de Moraes, leia-se O cinema de meus olhos, importante coleção de artigos e crônicas de filmes, organizada por Carlos Augusto Calil. Escreve Calil: “Essa convivência com filmes aumentou bastante quando, no final da década de 1940, o então jovem diplomata foi servir no consulado geral do Brasil em Los Angeles. Na meca do cinema, pôde conviver com estrelas como Orson Welles e Carmen Miranda, entre outras”.

Com as crônicas de A cidade vazia, Fernando Sabino talvez seja quem primeiro, durante o venturoso e abastado pós-guerra, torna moeda corrente entre os escritores brasileiros debutantes tanto as boas qualidades da nova narrativa norte-americana – em particular, a curta – quanto o comentário circunstanciado, irônico e concreto sobre o American way of life. Note-se que o estilo claro, enxuto e pouco retórico dos gringos (Steinbeck dizia que seu ideal era reescrever a Bíblia sagrada com 600 palavras) já fazia parte da tradição brasileira desde Machado de Assis. Ao contrastar a linguagem barroca de Euclides da Cunha à econômica de Machado, Mário de Andrade – mestre inconteste de Sabino – já prenunciava o Graciliano Ramos de Vidas secas e o João Cabral de Melo Neto dos poemas de O engenheiro e da Psicologia da composição. Mário define o instrumento de trabalho do nosso Machado: “[...] ele era ainda o homem que compunha com setenta palavras”. Sempre as mesmas setenta palavras.

Não se pode dizer, pois, que as crônicas de Fernando Sabino, ou mesmo o romance O encontro marcado, só estariam em débito com os prosadores norte-americanos da primeira metade do século XX. Existe na obra do mineiro, isso sim, uma aclimatação estilística de Fitzgerald e Hemingway e, mais importante, uma visão original e de dentro da sociedade norte-americana no pós-guerra. A percepção e o entendimento submetidos ao leitor em busca de nova informação sobre a Big Apple não são maniqueístas, como nos panfletos inpirados pelo repúdio aos valores capitalistas impostos pelo imperialismo norte-americano. Fernando tem o faro de futuro grande escritor.

Ele escolhe temas banais para ilustrar o que nos é servido como grandioso.

Foram duas as crônicas – me sopra a memória − que mais me tocaram numa primeira e antiga leitura da coleção. Numa delas o narrador se descreve diante de um desses espelhos enormes que deformam a imagem humana. Portanto, mais do que descrever a condição de estrangeiro não muito bem recebido por uma sociedade supremacista e basicamente intolerante, que nos classifica como south of the border, misturando-nos a todos no mesmo quintal sul-americano, o cronista trabalha as deformações sofridas pelo próprio corpo se contemplado pelos olhos de observador cínico num espelho mágico da Broadway. O particular é deformado, e o todo, deformante. Tudo na vida cotidiana norte-americana no pós-guerra é distorção. Inevitavelmente. Com ela há que se aprender a conviver, condição básica da forçada fraternidade americana em tempos que prenunciam a Guerra Fria.

Como é atual essa crônica na nova era das fake news apregoadas pelo presidente Donald Trump e defendidas por um eleitorado pusilânime.

A distorção também transparece na outra crônica. Trata da invenção da laranja pela indústria alimentícia. Como a fruta não pode ser naturalmente preservada, vai passando por sucessivos processos industriais que a tornam líquida e passível de ser embalada em latinha ou em caixa da papelão. O líquido, o suco natural, é também difícil de ser preservado. Diante do impasse imposto pelo progresso industrial deformante a uma sociedade consumista, nada como voltar à origem, à fruta in natura, e descobrir que a melhor maneira de comercializar a laranja é inventando-a, isto é, reinventando-a para vendê-la como tal.

Que minha memória não me traia. Isto é, que não tenha deformado por demais as observações críticas, pois é a ela que venho pedindo auxílio para escrever os posts.

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Silviano Santiago nasceu em 1936, em Formiga (MG). É autor de Mil rosas roubadas, vencedor do prêmio Oceanos em 2015. Sua vasta obra inclui romances, contos, ensaios literários e culturais. Doutor em letras pela Sorbonne, Silviano começou a carreira lecionando nas melhores universidades norte-americanas. Transferiu-se posteriormente para a PUC-Rio e é, hoje, professor emérito da UFF. Por quatro vezes foi distinguido com o prêmio Jabuti, o último sendo o primeiro lugar na categoria Romance com Machado. Pelo conjunto da produção literária, recebeu o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras e o José Donoso, do Chile. Silviano vive hoje no Rio de Janeiro e acaba de relançar pela Companhia das Letras Stella Manhattan.

 

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