ERRATA: "Trincheira tropical", de Ruy Castro
Errata no livro "Trincheira tropical", de Ruy Castro, que narra a Segunda Guerra Mundial no Rio

Hoje é 31 de outubro, hoje é Dia D!
Há 116 anos, nascia, na cidade de Itabira, o grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Aproveitamos a data para celebrar a obra do autor de Sentimento do mundo, A rosa do povo, Claro enigma e tantos outros livros.
No Blog da Companhia, oferecemos aos leitores o postscriptum de Maquinação do mundo, livro do crítico José Miguel Wisnik que percorre a obra de Drummond e a história da mineração naquilo que diz respeito ao poeta, sem nunca perder de vista a potência da poesia como instrumento de percepção alargada e de criação de mundos.
Em maio-junho de 2016, circulou pela internet um vídeo em que um garoto em situação social evidentemente vulnerável, chamado Vitor (pelo que informa a legenda do post), declama o poema “José”, de Carlos Drummond de Andrade. A cena é de rua, o ambiente urbano é o de Salvador e o entorno é o de uma manifestação em que gritos de “Fora Temer” se distinguem ao fundo. Dois manifestantes, trajando camisetas do Coletivo de Entidades Negras, acompanham de perto a recitação, com atenção compenetrada. Passantes ao acaso, envolvidos ou não na passeata, automóveis daqui e dali, um skatista, um ou outro policial de capacete, cruzam o quadro por trás do menino que pronuncia o poema com orgulho e com brilho, nas palavras, nos gestos e nos olhos.
A vizinhança do ato político, com a assertividade estridente de seus slogans, não desmente a força do texto sombrio, duro e interrogativo, que martela inapelavelmente um real sem saída, e que o menino diz com dignidade luminosa. A declamação também não desmente a manifestação, da qual ela brota como uma flor no asfalto, e com a qual entra em desconcertante contraponto. “E agora, José?/ A festa acabou,/ a luz apagou,/ o povo sumiu,/ a noite esfriou,/ e agora, José?/ e agora, você?/ você que é sem nome,/ que zomba dos outros,/ você que faz versos,/ que ama, protesta?/ e agora, José?” Numa sincronia não calculada por ninguém, o poema, datado de 1942, parece bater em cheio na hora política que atravessamos, com sua nomeação sem trégua do colapso das ilusões e o esgotamento das perspectivas, na fronteira entre os fracassos pessoais e as derrotas históricas (“a noite esfriou,/ o dia não veio, […]/ o riso não veio,/ não veio a utopia/ e tudo acabou/ e tudo fugiu/ e tudo mofou,/ e agora, José?”).²
Como acontece outras vezes na poesia de Drummond, faz-se o implacável autoexame de debilidades que são ao mesmo tempo subjetivas e de classe — íntimas, intransferíveis e exemplares (“sua biblioteca,/ sua lavra de ouro,/ seu terno de vidro,/ sua incoerência,/ seu ódio — e agora?”). O horizonte restrito e claustrofóbico ganha, no entanto, a dimensão de um diagnóstico de impasses em todas as frentes. Na situação de que falamos, por obra mais uma vez do acaso objetivo (essa espécie de Sobrenatural de Almeida)³, o poema expõe a fratura brasileira em tempo real: a crise da esquerda e, no mesmo pacote colossal, o impasse do país. Não no modo, porém, de um niilismo passivo e derrotado — coisa que o entusiasmo de Vitor, ao lê-lo, faz ver melhor do que nunca. O poema cerca as escapatórias imaginárias (“Com a chave na mão/ quer abrir a porta,/ não existe porta;/ quer morrer no mar,/ mas o mar secou;/ quer ir para Minas,/ Minas não há mais”), e esse cerco isola, em última instância, o núcleo irredutível e radioativo da vida (“se você morresse…/ Mas você não morre,/ você é duro, José!”). Condenado a esse imperativo inescapável (“a vida tem tal poder:/ na escuridão absoluta,/ como líquido, circula”, diz outro poema)?, o sujeito é lançado, afinal, no rumo da incerteza histórica: “Sozinho no escuro […]/ sem teogonia,/ sem parede nua/para se encostar,/ sem cavalo preto/ que fuja a galope,/ você marcha, José!/ José, para onde?”.
O vídeo contém uma lição crucial: um garoto mal escolarizado enuncia com extraordinária naturalidade e alegria um poema denso e desafiador, demonstrando entendimento do ritmo, das inflexões, das pequenas frases e da grande frase do texto compreendido como um todo — ou seja, empresta sentido ao poema fazendo com que os sentidos do poema venham à tona. Por ironia, essa capacidade dialógica, inerente a toda boa leitura, está no polo oposto do analfabetismo funcional que assola o sistema brasileiro de ensino e a cultura em geral do país de baixo letramento. A incapacidade de entender um parágrafo, de juntar frases, de conectar ideias é uma extensão direta da incapacidade de emprestar sentido, e de ter motivação para fazê-lo. As políticas educacionais parecem cegas para isso. A adesão ao poema, porém, exibe o seu poder de irradiação em cada verso e em cada frase — o menino joga, pela poesia, o antiquíssimo jogo da ficção e do teatro, em que entrar no papel é condição para poder sair dele, projetando as agruras do personagem José num campo virtual em que este pode ser vivido como um eu que é um outro, e com o qual nos livramos do peso de redobrar pateticamente o seu drama, sem no entanto fugir dele.
Algum indivíduo ou grupo, que não estamos vendo, terá feito, aí, o papel do educador, muito possivelmente de maneira informal, apresentando a Vitor o universo da poesia, e ele terá tido paixão de sobra para tomar para si aquela estranha e fascinante trama de palavras. A situação desmente toda uma cascata de preconceitos, entre os quais o de que a literatura é inacessível ou desinteressante para crianças e adolescentes, em especial quando pobres. O caso de Vitor declamando “José” é extremo, mas não está sozinho: ele é a mais desprotegida e a mais nua das vozes periféricas que emergiram no país, desde algum tempo, marcando a cena cultural com o xis da questão que é sua e nossa — no movimento hip-hop, nos saraus de poesia, na onda mais recente da poesia de rua (o slam), nas manifestações inumeráveis da canção, na escrita literária. O poeta que disse, ao se confrontar com a sua herança familiar oligárquica, que “meu sangue é dos que não negociaram, minha alma é dos pretos”?, está dentro disso. Sua matéria é, de fato, “o tempo presente” e “a vida presente”.?
Li em algum lugar que Vitor, depois da divulgação do vídeo pela internet, evitou embarcar na onda de notoriedade que o transformaria num bibelô instantâneo da mídia. Ouvi contar, por outro lado, quando fiz palestra sobre Drummond na Universidade Federal da Bahia, que ele teria mais recentemente sofrido violência policial, e que estava à beira de mergulhar numa espiral violenta de descrença em tudo. Ele faz a pergunta de todas as perguntas e é a resposta de todas as respostas.
São Paulo, 7 de abril de 2018
Notas:
¹ Em raros momentos, a declamação discrepa do texto original. No caso dessa passagem, faltam os versos “o dia não veio, […]/ o riso não veio,/ não veio a utopia/ e tudo acabou”.
³ Expressão com que Nelson Rodrigues nomeava a ocorrência do acaso propício.
?“ Noturno à janela do apartamento”, em Sentimento do mundo.
? “Os bens e o sangue”, em Claro enigma.
? “Mãos dadas”, em Sentimento do mundo.
José Miguel Wisnik nasceu em 1948, em São Vicente (SP). Pianista e compositor, atualmente é professor aposentado da Universidade de São Paulo. Publicou, entre outros livros, O coro dos contrários: A música em torno da Semana de 22 (1977), O som e o sentido: Uma outra história das músicas (1988, 2017), Sem receita: Ensaios e canções (2004) e Veneno remédio: O futebol e o Brasil (2008).
E não perca: neste dia 31 de outubro, às 21h30, Wisnik convida convida Arrigo Barnabé, Kristoff Silva e Nuno Ramos para uma conversa sobre a obra de Drummond. O espetáculo acontece no Sesc Pompeia, em São Paulo. A entrada é gratuita e é preciso retirar convites 1 hora antes do início do evento. Confirme sua presença.

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