Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Silviano Santiago
Leia também os textos anteriores:
Tal é a importância de Erico Verissimo na formação dos estudos de literatura brasileira nos Estados Unidos que, em 1962, quando fui ensinar literatura luso-brasileira e língua portuguesa na Universidade do Novo México, em Albuquerque, o livro de texto escolhido pelo Romance Languages Department, complemento do aprendizado gramatical, era o Gato preto em campo de neve, numa edição norte-americana em português.
Erico sempre traduz da língua inglesa, dando preferência a autores de menor porte, como o prolífico britânico Edgar Wallace (1875-1932), que compete, ou competia, no circuito comercial com Agatha Christie e Georges Simenon. Contraponto, de Huxley, e Homens e ratos, obra-prima de Steinbeck, são exceções à regra na longa lista de traduções assinadas por Erico. Pelo britânico Huxley e o norte-americano Steinbeck e principalmente por ter sido o notável e corajoso editor na prestigiosa Editora Globo é que ele se afirma como o principal responsável pela introdução da boa prosa ficcional norte-americana no Brasil.
No meu caso pessoal, é um curto romance de Horace McCoy, They shoot horses, don’t they?, traduzido por ele em 1947 com o título de Mas não se mata cavalos?, que me apresenta nos anos 1950 o potencial do estilo proposto por figuras do porte de Hemingway, Steinbeck e Fitzgerald, como perfeitamente compatível com a língua portuguesa falada no Brasil. A bater na mesma tecla está o conto “O jovem audaz no trapézio volante”, de William Saroyan, traduzido por João Cabral de Melo Neto e publicado em suplemento literário carioca nos anos 1950.
É bom, no entanto, não esquecer que a cultura norte-americana – no seu todo – entra de maneira muito mais eficiente e acachapante pelos meios de comunicação de massa, hoje designados como pop. Duas questões críticas se destacam: no tocante à questão do cinema feito em Hollywood, o esvaziamento do cinema nacional e, em referência às histórias em quadrinho, a importação dos flans dos comic books. Ambas inflamam os espíritos críticos do domínio cultural norte-americano nos trópicos. Com o correr dos anos, a reação se torna mais violenta e poderá ser traduzida pelo grito de célebre slogan pelos estudantes nos movimentos de caráter político: Yankee, go home!
De modo premonitório, tratei da questão pop em ensaio publicado em novembro de 1976 na Revista Vozes, intitulado “Brasil-Estados Unidos: relações culturais de dependência”. O então comunista Carlos Lacerda e o partidário Dyonélio Machado, autor do notável romance Os ratos, são os que, durante a guerra e no pós-guerra, mais rejeitam a entrada nefasta no Brasil da cultura pop norte-americana.
Terminada a guerra e a ditadura Vargas, Erico Verissimo entrega o bastão literário ao jovem Fernando Sabino. Em 1946, o mineiro se forma em Direito, pede licença como funcionário público e embarca com Vinicius de Moraes para os Estados Unidos. Passa a residir em Nova York, centro da elite intelectual norte-americana. Por ter assumido o posto de vice-cônsul do Brasil em Los Angeles, Vinicius toma caminho oposto. Passa a optar pela cultura pop, sem desprezar, evidentemente, a poesia lírica. Fernando trabalha no Escritório Comercial do Brasil e depois no Consulado Brasileiro. Já em 1947, envia as primeiras crônicas de Nova York para o Diário Carioca e O Jornal, do Rio de Janeiro, que são transcritas por diversos jornais do resto do país.
Em 1950, as crônicas sobre sua experiência norte-americana são reunidas na pouco lida e excepcional coleção A cidade vazia. De Vinicius de Moraes, leia-se O cinema de meus olhos, importante coleção de artigos e crônicas de filmes, organizada por Carlos Augusto Calil. Escreve Calil: “Essa convivência com filmes aumentou bastante quando, no final da década de 1940, o então jovem diplomata foi servir no consulado geral do Brasil em Los Angeles. Na meca do cinema, pôde conviver com estrelas como Orson Welles e Carmen Miranda, entre outras”.
Com as crônicas de A cidade vazia, Fernando Sabino talvez seja quem primeiro, durante o venturoso e abastado pós-guerra, torna moeda corrente entre os escritores brasileiros debutantes tanto as boas qualidades da nova narrativa norte-americana – em particular, a curta – quanto o comentário circunstanciado, irônico e concreto sobre o American way of life. Note-se que o estilo claro, enxuto e pouco retórico dos gringos (Steinbeck dizia que seu ideal era reescrever a Bíblia sagrada com 600 palavras) já fazia parte da tradição brasileira desde Machado de Assis. Ao contrastar a linguagem barroca de Euclides da Cunha à econômica de Machado, Mário de Andrade – mestre inconteste de Sabino – já prenunciava o Graciliano Ramos de Vidas secas e o João Cabral de Melo Neto dos poemas de O engenheiro e da Psicologia da composição. Mário define o instrumento de trabalho do nosso Machado: “[...] ele era ainda o homem que compunha com setenta palavras”. Sempre as mesmas setenta palavras.
Não se pode dizer, pois, que as crônicas de Fernando Sabino, ou mesmo o romance O encontro marcado, só estariam em débito com os prosadores norte-americanos da primeira metade do século XX. Existe na obra do mineiro, isso sim, uma aclimatação estilística de Fitzgerald e Hemingway e, mais importante, uma visão original e de dentro da sociedade norte-americana no pós-guerra. A percepção e o entendimento submetidos ao leitor em busca de nova informação sobre a Big Apple não são maniqueístas, como nos panfletos inpirados pelo repúdio aos valores capitalistas impostos pelo imperialismo norte-americano. Fernando tem o faro de futuro grande escritor.
Ele escolhe temas banais para ilustrar o que nos é servido como grandioso.
Foram duas as crônicas – me sopra a memória − que mais me tocaram numa primeira e antiga leitura da coleção. Numa delas o narrador se descreve diante de um desses espelhos enormes que deformam a imagem humana. Portanto, mais do que descrever a condição de estrangeiro não muito bem recebido por uma sociedade supremacista e basicamente intolerante, que nos classifica como south of the border, misturando-nos a todos no mesmo quintal sul-americano, o cronista trabalha as deformações sofridas pelo próprio corpo se contemplado pelos olhos de observador cínico num espelho mágico da Broadway. O particular é deformado, e o todo, deformante. Tudo na vida cotidiana norte-americana no pós-guerra é distorção. Inevitavelmente. Com ela há que se aprender a conviver, condição básica da forçada fraternidade americana em tempos que prenunciam a Guerra Fria.
Como é atual essa crônica na nova era das fake news apregoadas pelo presidente Donald Trump e defendidas por um eleitorado pusilânime.
A distorção também transparece na outra crônica. Trata da invenção da laranja pela indústria alimentícia. Como a fruta não pode ser naturalmente preservada, vai passando por sucessivos processos industriais que a tornam líquida e passível de ser embalada em latinha ou em caixa da papelão. O líquido, o suco natural, é também difícil de ser preservado. Diante do impasse imposto pelo progresso industrial deformante a uma sociedade consumista, nada como voltar à origem, à fruta in natura, e descobrir que a melhor maneira de comercializar a laranja é inventando-a, isto é, reinventando-a para vendê-la como tal.
Que minha memória não me traia. Isto é, que não tenha deformado por demais as observações críticas, pois é a ela que venho pedindo auxílio para escrever os posts.
Silviano Santiago nasceu em 1936, em Formiga (MG). É autor de Mil rosas roubadas, vencedor do prêmio Oceanos em 2015. Sua vasta obra inclui romances, contos, ensaios literários e culturais. Doutor em letras pela Sorbonne, Silviano começou a carreira lecionando nas melhores universidades norte-americanas. Transferiu-se posteriormente para a PUC-Rio e é, hoje, professor emérito da UFF. Por quatro vezes foi distinguido com o prêmio Jabuti, o último sendo o primeiro lugar na categoria Romance com Machado. Pelo conjunto da produção literária, recebeu o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras e o José Donoso, do Chile. Silviano vive hoje no Rio de Janeiro e acaba de relançar pela Companhia das Letras Stella Manhattan.
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Rádio Companhia apresenta "As narradoras": minissérie em áudio sobre vozes literárias femininas do século XX
Como se preparar para a Conferência do Clima, que este ano acontece em Belém