ERRATA: "Trincheira tropical", de Ruy Castro
Errata no livro "Trincheira tropical", de Ruy Castro, que narra a Segunda Guerra Mundial no Rio

Foto: TV Globo/ Reprodução
“A verdadeira poesia se faz contra a poesia", disse o poeta Henri Michaux. Para ele, era preciso se contrapor à poesia da época anterior, não exatamente “por ódio”, mas para poder dar lugar a outras formas de percepção; como se o novo momento exigisse limpar a couraça do poema para poder construir novas formas de dizer.
Nessa linha “contra” a poesia, já houve bastante debate, do recente “Ódio à poesia”, de Ben Lerner, ao clássico poema de Marianne Moore: “Também não gosto./ Lendo-a, no entanto, com total desprezo, a gente acaba descobrindo/ Nela, afinal de contas, um lugar para o genuíno.”¹
A má vontade com o poema pode ser saudável, talvez ela ajude a produzir uma pausa para a reflexão, uma espécie de desautomatização. Muitas vezes é preciso escrever (e ler) contra a nossa própria ideia de poesia ou contra certo impulso inicial do poema.
Gosto da formulação do Manuel Bandeira, menos negativa, no breve “Poema do beco”:
“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
O que eu vejo é o beco.”
Ao seu modo, dispensa os grandes temas da poesia para tratar do menor, do estreito beco. Ele não evitará, de todo, os grandes temas, mas a lição do pequeno está em primeiro plano e, talvez permita, em outros momentos, apreender a paisagem e o genuíno de que fala Moore.
Pensava no assunto pois queria escrever um poema que tivesse a palavra “coração”. Como usar uma palavra tão batida sem soar pesado? Como remover da palavra os usos e o lugar comum? Tendo o coração se tornado palavra gasta, seria possível voltar o coração contra o coração?
É conhecida a anedota em que (o antilírico) João Cabral de Melo Neto pergunta ao amigo Vinicius de Moraes (o mais lírico), que vivia compondo canções de amor: “Será que você não tem outra víscera para cantar?” A pergunta rabugenta não deixa de ser um conselho contra este impulso de cantar o amor de forma previsível.
De todo modo, procurei os poemas que falam de coração e há uma longa série, que vai de Carlos Drummond de Andrade – e seu coração “muito menor do que o mundo”, que responde aos versos inaugurais de Tomás Antônio Gonzaga (“Meu coração é maior do que o mundo”) –, passando por Adélia Prado e seu “coração disparado”, chegando aos contemporâneos e o literal “coração de boi esfriando sobre a pia de granito”, de Ana Estaregui.
Frank O’Hara declarou: “meu coração está no bolso e é um livro de Pierre Reverdy”. E Augusto de Campos se encontra com o coração em alguns textos como “coraçãocabeça” que desacelera e torna não linear a leitura do poema por meio de recursos gráficos: “meu coração não cabe em minha cabeça/ minha cabeça começa em meu coração.”²
Ana Cristina Cesar levanta a pergunta: “perto do coração tem palavras?”, tratando da dificuldade em nomear a emoção, mas ela própria parece responder, já que usou 18 vezes (eu contei!) a palavra “coração” no livro A teus pés.
Termino com o “osso do coração”, poema-fábula de Zuca Sardan em que o personagem principal de uma peça sobrevive a todos para, no fim, arrancar o coração do próprio peito, despelá-lo até sobrar só o osso, onde ele deixará gravada a verdade: todo mundo se matou por ilusão. Talvez este osso ilustre bem a ideia de coração contra o coração.
¹ Tradução de José Antonio Arantes.
Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017).
Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).
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